Salvador acaba de entrar oficialmente na lista das cidades que não poderão mais contratar artistas ou bandas com músicas que contenham letras de teor sexual explícito, apologia ao crime ou incentivo ao uso de drogas ilícitas, quando o evento for financiado com dinheiro público. A medida, sancionada pelo prefeito Bruno Reis (União Brasil), foi publicada no Diário Oficial do Município no último dia 16 e tem como base o projeto de lei do vereador Alexandre Aleluia (PL).
A nova legislação resgata o espírito da chamada “Lei Antibaixaria”, de autoria da ex-deputada Luiza Maia (PT), implementada em 2012 na esfera estadual. Agora, ela ganha um novo fôlego na capital baiana, apontando diretamente para uma questão antiga e delicada: o conteúdo das letras musicais e seus impactos na imagem da mulher, na juventude e na construção da identidade cultural nas periferias.
Indústria fonográfica impactada
A decisão tem efeitos que vão muito além dos palcos públicos. Ela incide diretamente sobre a indústria fonográfica baiana, que há anos enfrenta um apagamento gradual de sua identidade. O pagodão baiano, por exemplo, perdeu espaço nas grandes programações, seja como atração principal ou até mesmo como abertura de shows. Isso aconteceu justamente por conta do conteúdo explícito de muitas músicas, que passaram a ser vistas com desconfiança por patrocinadores e gestores públicos.
Esse movimento abriu brechas para outros gêneros, como o sertanejo, ocuparem o lugar de destaque que antes era da música baiana. O axé, que já foi o principal cartão de visitas do estado, também foi enfraquecido nesse processo. A força das letras agressivas e o apelo sexual, muitas vezes desconectados de uma construção artística sólida, ajudaram a distanciar o público e os investimentos.
Valorização das letras limpas e a necessidade de repensar narrativas
Ao proibir esse tipo de contratação com dinheiro público, a nova lei pode se tornar uma oportunidade para que artistas, produtores e a própria indústria passem a repensar suas estratégias. Letras limpas, com conteúdos criativos e respeitosos, podem voltar a ganhar espaço em editais, festas populares e eventos de grande porte, devolvendo à música baiana a pluralidade que sempre marcou sua trajetória.
Mas isso não é apenas sobre limpar letras. É sobre cuidar da imagem da mulher, respeitar a diversidade cultural e entender o poder educativo da música. É sobre se conectar novamente com o povo de forma consciente e construtiva, sem abrir mão da liberdade artística, mas equilibrando-a com responsabilidade social.
Paredões e cultura periférica: um debate sensível e necessário
Outro ponto delicado é o dos paredões. Essa manifestação popular, muito presente nas favelas de Salvador, é vista por muitos como expressão legítima da cultura periférica. No entanto, também sofre com a falta de organização, de regulamentação e, principalmente, com o preconceito institucional. A ausência de políticas públicas que compreendam a complexidade desse fenômeno acaba criminalizando o lazer popular e gerando mais exclusão.
Em muitas áreas, o paredão é a única alternativa de diversão para jovens que não têm acesso a eventos pagos ou à estrutura dos grandes shows. É preciso que esse debate avance para além da repressão. É preciso olhar com sensibilidade para as camadas sociais envolvidas, entender a dimensão cultural do paredão e trabalhar soluções que integrem, em vez de afastar ainda mais a favela do circuito cultural da cidade.
A nova lei traz à tona muitas perguntas. E talvez a mais importante delas seja: como construir uma cena musical que respeite, eduque e represente de forma digna o povo que mais consome, mais produz e mais movimenta a cultura dessa cidade?