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Quando uma religião se sobrepõe em outra

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O sincretismo religioso no Brasil, principalmente na Bahia, é um tema que levanta reflexões profundas e provoca inúmeras curiosidades entre os adeptos das religiões de matriz africana. Trata-se de um fenômeno que carrega em sua essência as marcas do colonialismo e da opressão, mas que, ao mesmo tempo, moldou a história cultural e religiosa do país.

Quem conhece brevemente o sincretismo religioso baiano entende que, durante a escravidão, os africanos escravizados associaram suas divindades, os orixás, aos santos católicos, como forma de preservar suas crenças diante da brutal repressão. O catolicismo, naquela época, era usado como ferramenta de controle, uma extensão do poder colonial que ditava regras não apenas políticas, mas também espirituais.

Com o passar dos anos, o mundo mudou. Avanços tecnológicos e o acesso à informação deram ao povo negro instrumentos para resgatar sua história e revisitar suas origens. No entanto, uma questão crucial persiste: por que, mesmo em tempos modernos, o Candomblé ainda caminha lado a lado com o catolicismo de forma que perpetua um vínculo de subserviência? Por que, para muitos, ainda é necessário que o candomblecista atrelado às práticas ancestrais “se curve” diante das tradições católicas para obter aceitação social?

Essa associação, muitas vezes, remete diretamente aos 300 anos de escravidão. Os resquícios desse período triste da história da humanidade se manifestam em diversos aspectos da vida brasileira: no trabalho, no estilo de vida e, sobretudo, na fé. Um exemplo evidente disso é a celebração de Santa Bárbara, sincretizada com Iansã. A festa, que marca o início das celebrações populares de verão em Salvador, é um ícone da cultura baiana, mas também um símbolo do entrelaçamento forçado entre o sagrado africano e o europeu.

Foto: Dener Dublack | Festa de Santa Bárbara, São Félix-Bahia.

Por mais que essa prática tenha sido vital em tempos de repressão, hoje ela convida a questionamentos. Será que, no contexto atual, ainda é necessário que o candomblecista perpetue um hábito que carrega o peso do período escravagista? É tempo de refletir se a associação entre religiões, uma vez estratégia de sobrevivência, ainda faz sentido em uma sociedade que precisa caminhar para o respeito à pluralidade religiosa.

Um ponto que merece destaque é o batismo na Igreja Católica, que muitas vezes é pré-requisito para a iniciação no Candomblé. Essa prática é realizada por muitos terreiros, sem uma explicação clara ou unânime por parte dos sacerdotes e sacerdotisas. Diferente do catolicismo, que possui a Bíblia como referência central, o Candomblé é uma religião de tradição oral, transmitida por meio de vivências, rituais e ensinamentos passados de geração em geração. Assim, muitos praticantes reproduzem costumes sem questioná-los profundamente, simplesmente porque é “o que sempre foi feito”.

A associação entre Santa Bárbara e Iansã é um exemplo clássico de sincretismo. Ambas são figuras femininas fortes, ligadas aos elementos da natureza, como trovões e tempestades. No período colonial, essa associação foi uma estratégia de resistência, permitindo que as crenças africanas fossem preservadas sob a aparência de devoção aos santos católicos.

No entanto, práticas que antes foram cruciais para a sobrevivência de uma cultura oprimida hoje podem ser vistas como desnecessárias. A contemporaneidade exige um novo olhar: um olhar de pertencimento e de emancipação. É preciso ressignificar o que foi imposto pela opressão, honrar os ancestrais sem a necessidade de associações que só existiram devido à brutalidade de um sistema escravagista.

Festas populares, como as de largo, continuam sendo parte fundamental da cultura baiana, mas é importante reconhecer que essas celebrações carregam uma mistura complexa entre o sagrado e o profano. E, à medida que a sociedade avança, mais pessoas buscarão entender suas raízes e abraçar sua identidade religiosa de maneira plena, sem precisar de validação ou subordinação a outras religiões.

O Candomblé não é, de forma alguma, “coisa de ignorante”. Pelo contrário, ele é uma expressão de resistência, inteligência e respeito ao próximo. É uma religião que valoriza a diversidade, a sabedoria ancestral e os aprendizados contínuos. Reconhecer isso é um passo importante para que cada vez mais pessoas se libertem das amarras do passado e assumam com orgulho e dignidade o pertencimento à sua fé.